No dia 16 de março de 2024, decorreu na aldeia de Boassas uma bonita cerimónia de inauguração de monumento e homenagem às Sardinheiras de Boassas. A adesão foi muito significativa, quer a nível popular quer a nível institucional ( Presidente da Câmara Municipal de Cinfães e todos os vereadores do Executivo Camarário, presidentes de Juntas de Freguesia, Deputados Municipais ). Foi na verdade um dia feliz, numa iniciativa que trouxe à aldeia, já tão despovoada, muitos familiares das Sardinheiras e visitantes, todos imbuídos do espírito de homenagem às mulheres que, com o seu sacrifício e suor, nos deixaram um legado riquíssimo de valores inestimáveis, como a coragem, a luta contra as adversidades, a ousadia e a humildade.
A confraternização entre os participantes, na sardinhada após a homenagem, foi também salutar e promotora da sã convivência e reforço da solidariedade e do bairrismo. Foi admirável ver crianças felizes a brincar com balões, a jogar à bola, a correr e divertirem-se. Boassas voltou a ganhar vida e vitalidade. Também por isso a iniciativa valeu a pena!
E depois, nas conversas à volta das Sardinheiras, ouviram-se histórias notáveis. Um participante, vindo da freguesia de Tarouquela, onde agora reside, contou que estava ali com profunda comoção, porquanto, após o seu nascimento a mãe não tinha leite para o amamentar tendo pedido a uma Sardinheira para o fazer quando passava na venda da sardinha. Fê-lo pelo tempo necessário e deu-lhe a saúde e vigor de que hoje goza. E ganhou também um irmão de leite, e por tudo isso ficou para sempre grato às Sardinheiras que traziam no coração um admirável humanismo.
Após o descerramento da placa do monumento evocativo das Sardinheiras de Boassas, usou da palavra o Sr. Presidente da Junta de Freguesia de Oliveira do Douro, Dr. Telmo Osório, que enalteceu as sardinheiras e louvou o empenho do povo de Boassas no evento.
Seguiu-se-lhe o presidente da Associação para a Defesa do Vale do Bestança, signatário deste artigo, que discursou como vai a seguir:
“Exmº Sr. Presidente da Câmara Municipal de Cinfães na sua pessoa felicito todos os presentes, agradecendo a participação neste evento.
Permito-me distinguir na saudação as Sardinheiras de Boassas que ainda estão entre nós: Sras Blandina Madureira, Maria Augusta Teixeira Madureira, Deolinda de Jesus, Arminda Cidade, aqui presentes, e as Sras Maria dos Prazeres Marante, Blandina Pereira Teixeira, Albertina Jesus Prata, Maria Augusta ( aqui representadas por familiares, em virtude de doença que as impossibilita de estar e para quem desejamos a melhor saúde ).
Começo a minha alocução por louvar todos os que colaboraram nesta iniciativa.
Assim:
Aos Associados da ADVB, que fazem com que exista e tenha iniciativas como a que hoje concretizamos;
À Drª Sónia Figueiredo, autora destes magníficos painéis, uma verdadeira artista que captou a alma das Sardinheiras, e ao Prof. Augusto Teotónio pela disponibilidade sempre demonstrada;
Ao Sr. Presidente da Junta de Freguesia de Oliveira do Douro, por todo o apoio prestado;
Ao Prof. Manuel António Pereira, director do AEGSP, Cinfães, aqui representado pelo Subdiretor, Dr. Rui Botelho, que se mostrou sensível à homenagem que ora prestamos e quis abrir a escola às iniciativas da comunidade;
Ao Dr. Serafim Rodrigues, Vice-presidente da CMC, porque sempre acompanhou e deu sugestões cruciais para o bom conseguimento da iniciativa;
Ao Sr. Mário Durval, Vereador do Ambiente pelo seu envolvimento no projeto;
Ao Sr. Engº Luís Sequeira, pela sugestão na forma e execução do monumento e pelos preciosos conselhos técnicos;
À Sónia Botelho, autora do cartaz de divulgação;
Aos Snrs Nelo Tavares, Fernando Tendais Gregório, Fernando Sousa Campelo, pelo entusiasmo na iniciativa;
À Dª Teresa Almeida, que nos está a preparar uma bonita confraternização final;
À Associação Cantas e Cramóis-Cinfães e Rancho Folclórico de Santa Quitéria-Tendais;
Às Concertinas do Vale do Bestança;
À Academia D`Artes de Cinfães, Maestro Carlos Nunes;
À Comissão de Festas em Honra de Nossa Senhora da Estrela, pela vivacidade e colorido no engalanar do espaço envolvente e no tom festivo que soube dar ao momento;
Ao povo de Boassas, que distingue a aldeia pelo seu bairrismo e hospitalidade;
E, muito em especial, ao Sr. Presidente da Câmara Municipal de Cinfães, por ter impulsionado esta iniciativa na ereção de monumento e na homenagem às Sardinheiras de Boassas. Foi o seu incentivo e motivação que levou à concretização do momento que agora vivemos, com muita alegria e comoção, e, por isso, aqui fica a maior gratidão.
É toda uma comunidade que se une no bonito propósito desta cerimónia evocativa das Sardinheiras. Ninguém se alheou, ninguém quis deixar de colaborar.
Desde há 30 anos que a Associação para a Defesa do Vale do Bestança preserva, promove e defende este vale.
Acreditamos nas suas potencialidades naturais, patrimoniais, culturais e humanas. Consideramo-lo um vale único, com uma identidade ambiental, cultural e etnográfica muito própria. A sua maior riqueza são as pessoas, que materializam essas valências.
Hoje evocamos pessoas especiais, que nele deixaram uma marca valiosa: mulheres de Boassas, que até há uns anos atrás vendiam sardinha pelas portas, calcorreando os íngremes caminhos, de canastra à cabeça, desde a casa da Vareira, em Porto Antigo, descalças, fizesse chuva ou sol, frio ou calor, umas para além Douro, outras até à Gralheira, outras ainda subindo pelo vale do Bestança, cruzando o dorso do Montemuro e indo vender lá para os povoados da Paiva. Saíam de madrugada, noite escura, encomendando-se a Nossa Senhora da Estrela, e voltavam ao varrer do dia, ainda a horas de fazer a lide da casa. Foi assim anos a fio. E ao longo de todo esse tempo as Sardinheiras de Boassas granjearam dos povos do Montemuro e além Douro a maior simpatia, respeito e solidariedade.
Havia também homens a vender sardinha, mas as mulheres eram em número muito mais significativo.
Não há ninguém que delas não guarde saudades, ninguém que não tivesse ou tenha por elas o maior carinho e respeito. E porquê? Porque elas foram um exemplo de vida. Porque lutavam e com grandes sacrifícios ganhavam honradamente a vida; porque perfilhavam os valores da lisura e honestidade. Elas não traziam apenas sardinha na canastra, transportavam e irradiavam os valores do trabalho, da coragem e da determinação. E por isso eram ( são-no ) por todos admiradas.
Não podíamos, sob pena de cometermos a maior das injustiças, deixar de enaltecer essa conduta.
O monumento que estamos prestes a inaugurar é o reconhecimento pelo importante legado de vida que nos deixastes, e uma lembrança para os presentes e vindouros da vossa admirável atitude perante as agruras da existência.
Prestar-vos homenagem é também homenagear o laborioso povo de Boassas.
Aqui, nesta bonita aldeia debruçada sobre o Bestança e o Douro, havia dantes, em concomitância, nos idos dos anos 70, 12 estabelecimentos, entre tabernas e vendas; e entre ofícios tradicionais contavam-se 3 latoeiros ( Snrs Joaquim Costa, Constantino Campelo, Rui Teixeira, este último que está aqui connosco ), um marceneiro ( Sr. Manuel Tavares ), um tanoeiro ( Sr. Joaquim Loiro ), odreiros ( uma atividade sazonal, típica de Boassas, em que homens eram rogados para acarretarem vinho em odres, feitos de pele de cabra , para tabernas e casas particulares ), carreteiros, marinheiros dos rabelos que conheceram bem a fúria dos pontos do Douro e a dureza da faina, tão bem expressa no livro de Alves Redol, “Porto Manso”, pedreiros e canteiros, alfaiates, barbeiro, comerciantes, e, claro, as Sardinheiras!
- E aqui faço um parêntesis para transmitir ao Sr. Presidente da Câmara a vontade do povo de Boassas em ver neste largo mais dois painéis de azulejos: um dedicado aos latoeiros e outro aos odreiros, assim se valorizando ainda mais a identidade cultural e etnográfica desta aldeia. Fica o apelo.
Boassas era um formigar de gente, cada um em seu ofício, na sua arte, na sua forma digna de ganhar o sustento.
Os tempos e as pessoas são diferentes, mas as virtudes mantêm-se.
Caras Sardinheiras de Boassas, não é a Associação para a Defesa do Vale do Bestança ( nem eu, vosso humilde conterrâneo ) que vos vai homenagear. Curvo-me em demonstração do apreço e respeito que sinto por vós, eu que tenho na ascendência uma avó que também foi sardinheira e que trabalhou arduamente para me proporcionar um melhor futuro. E como dela me orgulho!
Assim como guardo saudosamente na memória a recordação daqueles fins de tarde, em que, na infância, brincava-mos na Arribada e víamos chegar, pressurosas, quase a rolar escadas abaixo, a Dª Blandina e a Dª Donzília, com as canastras à cabeça, às vezes carregadas de milho e feijão pela troca feita; e o Sr. Abílio e o Sr. Joaquim, amparando a gamela sobre a trouxa. Após a ceia, sentavam-se nos degraus num merecido descanso e convívio, contando as histórias da venda, até que o corpo reclamava repouso e todos recolhiam a casa para a deita. Ao outro dia, o ciclo repetia-se.
Esse preito, muito justo, vai ser-vos prestado pelo Município de Cinfães e pelo seu representante, o Sr. Presidente da Câmara Municipal de Cinfães, Enfº Armando Mourisco, a vós, como mulheres destemidas que sois, e à memória daquelas que já partiram, porque o vosso carater e os valores do trabalho, da coragem, do respeito, que sempre vos distinguiram, enfim, o vosso inestimável exemplo de vida, merecem ser exalçados e reconhecidos ao mais alto nível, em qualquer lugar, em todo o tempo.
Vivam as sardinheiras de Boassas!”
Finalizou as intervenções o Sr. Presidente da Câmara Municipal de Cinfães, num brilhante e comovente discurso em que enalteceu as qualidades das Sardinheiras, os valores que delas irradiaram, como o da coragem, solidariedade e afoiteza, legado que elas deixaram para as gerações vindouras e que constitui o lastro das virtudes dos Cinfanenses. Disse que o Município de Cinfães delas se orgulhava e que a homenagem era muito sentida e justa. Frisou que, para ele, são as pessoas que contam e que tudo fará para as valorizar e dignificar.
Viveu-se uma tarde em comunidade, com uma alegria espontânea; todos ali se sentiram bem e em são convívio, e, acima de tudo, vieram por uma boa e bonita causa: homenagear umas mulheres notáveis!
Uma nota final para dizer que o Sr. Presidente da Câmara Municipal de Cinfães, sensível ao apelo, se pronunciou logo no local favoravelmente à colocação, em Boassas, de pelo menos mais dois painéis evocativos dos latoeiros e odreiros, como forma de valorização temática do largo fronteiro à capela de Nossa Senhora da Estrela e uma forma de motivar um maior número de visitantes revitalizando a aldeia.Aqui fica a nossa gratidão.
Boassas, 19 de março de 2024.
Jorge ventura