Era um tempo de campanha eleitoral.
Viam-se pendões dependurados nos postes, cartazes pelas ruas e altifalantes que atroavam os ares com mensagens roufenhas de promessas e obras, tudo em nome da população e do seu bem-estar, que é para isso, e só por isso, que os políticos se apresentam ao eleitorado por essas terras fora.
Fausto, primeiro nome de sua graça, tendo por apelido “ O Sonhador”, era um dos candidatos à edilidade e andava numa azáfama a cativar os eleitores.
Na verdade, a sua missão, como ele eufemisticamente designava a “cativação do eleitor”, não ia assim de vento em popa. Tinha altos e baixos, mas baixos tão profundos que, não raras vezes, chegava a desanimar.
Como daquela vez em que lá para as bandas de Ferreiros, na margem direita do rio Bestança, numa concorrida “sessão de esclarecimento”, perante uma assistência cética e ruidosa, de aí uma doze almas, cheio de boas intenções e sonhos, perorou, uma boa meia hora, em defesa do meio ambiente, chegando até a empolgar-se com a verve discursiva: “ É preciso desenvolver um turismo sustentável, criarmos arquétipos de práticas salutares em promoção de uma cidadania ativa e uma consciência colectiva empenhada”!
Ah, pareceu-lhe bem aquela tirada, uma pletora ideológica e educacional. Mas logo esmoreceu quando, sequente a uma pausa de silêncio emudecido, uma das presentes, contempladora de muitas invernias, de lenço pela cabeça, disse, sem resguardo de puridade, para uma outra a seu lado, assestando-lhe um olhar de melindre: “Credo, não se percebe nadinha!”
E a interlocutora, não se dando sequer ao trabalho de lhe retrucar, deu apenas um safanão aos ombros e alargou a comissura dos lábios num meio sorriso escarninho.
Aquilo estarreceu-o. Deveras, a mensagem não passava, o eleitorado não fazia um esforço de compreensão, pese embora o modo entendível e apelativo do discurso, julgava ele.
Precisava de incentivo, de gente a sorrir-lhe, de palavras de apoio, de braços no ar em jeito de saudação.
E vai daí que, num certo dia, já ao varrer do sol, tivesse decidido ir a Valverde, um pequeno povoado anichado a meio da verdejante encosta, virada a nascente, na parte setentrional da freguesia de Tendais, que se entregava à proteção do seu padroeiro, São João Baptista, acolitado, em imagem de madeira policromada, num pequeno e gracioso templo a montante.
Aí, sim, tinha a certeza de ser efusivamente acolhido. Tinha-se nesse pequeno lugar por benquisto, e, quando aprecia, era sempre recebido com carinho, palavras de apreço e, amiúde, palmadinhas nas costas. Os cartazes da sua candidatura, ostentando o seu busto esbelto e os braços cruzados com caneta entre dedos, sob o lema “trabalhar pró povo”, permaneciam incólumes, como pairando paternalmente sobre aquela simpática comunidade. Um sinal de respeito, sem dúvida.
Esperançado, parou o veículo e saiu a terreiro para um pequeno largo donde se via até aos cimos do Montemuro, quase até à capela do Senhor do Amparo ( bem da sua ajuda carecia!) em cujas imediações brotam os augueiros que fazem a nascente límpida do rio Bestança.
Compôs a gravata em desalinho, vestiu o casaco, que abotoou, e puxou a camisa de modo a que os punhos alvos ficassem em evidência.
Não se via viv´alma. Deu umas passadas, respirou fundo o ar cálido e adocicado do fim de tarde e apoiou os braços numa rede bamboleante olhando, pensativo, o vale guarnecido de tons outonais embalado pelo murmúrio cavo das águas estrepitosas do rio escondido pela densa vegetação. Estava naquele pasmo quando uns cães esfaimados, sentindo a figura adventícia, começaram num ladrido esganiçado do alto de uma borda adjacente a uma casa de cuja antiga glória restava tão só umas ruínas dignas.
Atirou-lhes um olhar de enfado e afastou-se, vagarosamente, em direção à “Pensão Gilberto”. Não era na verdade uma pensão, mas apenas uma casa particular de apoiantes seus, dava isso por certo, o que não era desprezível, tão poucos eles eram.
Ostentava uma placa na humilde fachada, virada para a estrada, com aqueles dizeres gravados numa pedra de mármore que lá fora afixada pelos filhos dos proprietários, a trabalhar em Lisboa, pela razão de que ali se juntavam alguns dos habitantes da aldeia para almoçar e jantar, reunidos na cozinha, sentados ora à mesa ora em escabelos em círculo em frente à lareira, com cuidado para não incomodar uns gatos borralheiros que também reclamavam o calor das brasas, bem perto das panelas de ferro de três pés onde fervia a sopa.
E às refeições havia vozes sobrelevadas, conversas ruidosas e gesticulações que fendiam o fumo que espiralava pela chaminé enquanto se comia as vitualhas caseiras, numa cena de fazer lembrar a paleta de Pieter Breugel, o Velho.
Não andara uns escassos metros quando reparou, incrédulo, que um dos seus cartazes, com a sua fotografia garbosa, que ainda há dias tapava os buracos da porta desengonçada de uma corte de gado, estava agora rasgado, mutilado, só restando, ainda preso à madeira carunchosa, um pedaço de papel onde se adivinhava parte da sua testa, meia sobrancelha do olho esquerdo, e, vá lá, todo o seu couro cabeludo com a risca ao lado impecável.
Ficou hirto no meio da estrada poeirenta com a cabeça a girar num turbilhão de pensamentos.
Ingratos! Nem ali, naquele esconso rincão, no seio daquela gente que julgou confiável, gozava agora de merecimento, muito menos de prosélitos. Sentiu-se muito humilhado.
Tanto havia conversado com as pessoas, às vezes mordiscando um naco de broa e fingindo bebericar meio copo de vinho verdasco, que só de o levar aos lábios o atordoava, gracejando com elas, esclarecendo-as, se é que se fazia entender, difundindo os seus ideais, os seus propósitos em prol do desenvolvimento e modernidade que intendia implementar naquela terra logo que eleito, o que lhe parecia agora mais difícil do que atravessar a pé o deserto do Quarto Vazio.
Foi com a mente turva que viu aproximar-se uma moradora, que logo reconheceu, coxeando, agarrada a um bordão com que fendia compassadamente o solo, sobraçando um molho de erva. Era a dona do palheiro em cuja porta restava agora uma ínfima parte do seu cartaz.
Saudou-o de modo afável e com um sorriso rasgado.
O candidato ficou nervoso, mesmo irritado. Então rasgam-lhe a fotografia, amarfanham a sua mensagem política, vilipendiam as suas ideias e aparentam, na sua presença, nada se ter passado! Intolerável.
Respondeu com um “Muito boa tarde” circunspecto, e, cabisbaixo, cenho de pouca simpatia, procurou resguardo no automóvel.
Nisto, ouviu atrás de si a residente que, embaraçada, talvez associando o cartaz ou a falta dele à perturbação de espírito do candidato, dizia, numa voz engrolada: “O senhor desculpe, mas é que as ovelhas não me entravam na corte…”
Não, não era uma fábula. Tinha agora a certeza de qua a eleição estava perdida!
Jorge Ventura
Boassas, Abril de 2018.
Este texto é um excerto de um livro em preparação que, se os ventos forem favoráveis, haverá de merecer publicação sob o título em epígrafe.